Como qualquer outra pessoa que vive com a informação aos trambolhões, também eu sei fazer contas e concluir que, se as estatísticas dizem que um de nós, em cada três, há de ter cancro, muito provavelmente, ao longo da minha vida, viverei esta doença por dentro, seja na minha pele, seja nas de quem amo.
Não é a primeira vez que lhe sinto o cheiro, mas, por esta altura, chegou-me mais perto que nunca: entrou no peito de uma das mulheres da minha vida! Entrou, assim, de outro jeito, também no meu peito.
Esta é aquela hora das perguntas todas. Aquela em que nos pomos a olhar para todos os lados, à procura de culpados. Nesta busca frenética, há um instante em que mudamos a direção do olhar: voltamo-nos para cima. Fazemo-lo de modos muito diferentes, todos compreensíveis: há quem aponte o dedo, a barafustar e a pedir satisfações, num clamor desesperado de porquês, em fúria.
Desta vez, apetecia-me fazê-lo. Mas tenho algumas dificuldades: primeiro, sempre desconfiei desta coisa de sermos seres todo-poderosos (podemos as escolhas, é certo, mas a danada da vida continua a ser muito mais do que lógica!). Depois, vejo-me noutra inquietação: às vezes, fico assim a olhar, quietinha, a mulher cujo peito foi invadido pelo cancro e, em todas as ocasiões em que ela olha para cima, nunca a encontro zangada – vejo-lhe, na menina dos olhos, o reflexo daquele aconchego que só encontra quem procura alguém que já conhece, numa relação de peito aberto. (Suspeito que, de vez em quando, ela também olha para cima e reclama; mas fá-lo sempre, sempre em segredo – como acontece quando amamos muito alguém que fez asneira, mas que ainda assim queremos proteger de outros olhares).
A mim, resta-me aceitar a minha fragilidade e ficar bem perto, em silêncio.
[fonte]Fotografia: Alexey Kljatov[/fonte]