Quimioterapia: a influência do hipericão

Hipericão e QT 2A toxicidade ou a eficácia dos medicamentos pode ser alterada pela co-administração de uma ou mais plantas medicinais, através de alterações na atividade de enzimas e transportadores responsáveis pela metabolização do fármaco.

Muitos medicamentos usados em quimioterapia, os citostáticos, tal como fármacos prescritos para atenuar os efeitos secundários dos primeiros, podem ver a sua ação inibida pela toma de extratos de plantas, vulgarmente tidas como “inofensivas”.

O hipericão ou erva de S. João, é muito usado para aliviar sintomas depressivos ligeiros a moderados, ansiedade e síndrome pré-menstrual. É consumido na forma de infusão ou como suplemento, líquido ou em cápsulas, sabendo-se que, para um efeito anti-depressivo, a dose diária recomendada é de 900mg.

Tal como em todas as plantas, encontramos na composição do hipericão uma grande quantidade de substâncias diferentes. Dele, fazem parte a hipericina e a pseudohipericina, a hiperozida, a quercitrina e a isoquercitrina, as xantonas, a hiperforina, um óleo volátil, taninos catéquicos e derivados do ácido cafeico. Isto mostra uma relevante característica; o facto desta e de outras ervas serem sempre misturas de várias substâncias potencialmente ativas. Além disso, os produtos obtidos a partir de plantas quase nunca têm exatamente a mesma composição entre embalagens e, muito menos, entre diferentes marcas, devido a variações no cultivo, na colheita, na armazenagem e na extração dos componentes ativos.

No caso do hipericão, 3,5 a 6g da planta seca fornecem 1g de extrato da mesma, o que é importante para avaliar a sua ação. Além disso, são exigidas certas quantidades de substâncias que são parcialmente responsáveis pela eficácia do hipericão, o que se traduz em 0.1- 0,3% de hipericina, no mínimo 2-4% de flavonóides e 2-6% de hiperforina. Outros componentes estão também presentes, como 0.15-0.72% de xantona e de óleos essenciais, 6.5-15% de taninos catéquicos e de derivados do ácido cafeico. As quantidades dos compostos principais e de outros constituintes determina o potencial de interação com os fármacos usados, não só mas também em quimioterapia.

A hiperforina, um dos componentes ativos mais importantes do hipericão, atua negativamente na interação com alguns citostáticos mas também com outros fármacos, como a clorzoxazona (um relaxante muscular), varfarina (anticoagulante), gliclazida (usado na diabetes tipo 2), contracetivos orais (etinil estradiol e noretindrona), digoxina (usado em doentes cardíacos), entre outros. Este componente do hipericão induz duas das enzimas mais importantes no metabolismo dos fármacos (CYP3A4 e CYP2C9), oxidando uma ampla variedade de estruturas químicas. Além disso, induz a glicoproteína-P, um transportador, afetando o trajeto esperado no organismo de alguns fármacos para surtirem efeito. Estas interações podem facilmente resultar em efeitos clinicamente relevantes com vários fármacos, as quais podem levar à ineficácia do medicamento. Assim, os seus efeitos são de uma grande e indiscutível relevância.

As consequências do hipericão foram estudadas em doentes oncológicos (com 900mg, durante 18 dias), durante o tratamento com irinotecano (no carcinoma colorretal avançado).

A planta diminuiu a exposição aos agentes ativos do medicamento, reduzindo a quantidade total do fármaco que alcançou a circulação sanguínea em 42% e a relação entre a quantidade do principal metabolito inativo do irinotecano e a de irinotecano em 28%, verificando-se uma redução do efeito anti-cancerígeno do fármaco. Noutro estudo, o hipericão (300 mg, 3x/dia, 14 dias) aumentou a taxa pela qual o imatinib (prescrito para a leucemia mielóide crónica e para tumores gastrintestinais malignos) foi eliminado do organismo em 43% e diminuiu a quantidade do mesmo na corrente sanguínea em 30%.

Concluindo, quando se prescreve citostáticos ou outros fármacos a doentes oncológicos que consomem produtos derivados de hipericão, a evidência atual indica que a sua administração com substratos das enzimas e do transportador referidos deverá ser totalmente evitada. Em caso de dúvida, o doente deverá interromper a fitoterapia durante as terapêuticas anti-tumorais.

Referências: Haefeli WE & Carls A. Drug interactions with phytotherapeutics in oncology. Expert Opin. Drug Metab. Toxicol. 2014; 10(3):359-77; Gurley BJ, Swain A, Williams DK, et al. Gauging the clinical significance of P-glycoprotein-mediated herb-drug interactions: comparative effects of St. John’s wort, Echinacea, clarithromycin, and rifampin on digoxin pharmacokinetics. Mol Nutr Food Res 2008;52:772-9; Shord SS, Shah K, Lukose A. Drug-botanical interactions: a review of the laboratory, animal, and human data for 8 common botanicals. Integr Cancer Ther 2009;8:208-27; Mathijssen RH, van Alphen RJ, Verweij J, et al. Clinical pharmacokinetics and metabolism of irinotecan (CPT-11). Clin Cancer Res. 2001;7:2182-94; Mathijssen RH, Verweij J, de Bruijn P, et al. Effects of St. John’s wort on irinotecan metabolism. J Natl Cancer Inst 2002;94:1247-9; Frye RF, Fitzgerald SM, Lagattuta TF, et al. Effect of St John’s wort on imatinib mesylate pharmacokinetics. Clin Pharmacol Ther 2004; 76:323-9. Fonte de imagens: http://www.tuasaude.com/hipericao/

Dina Raquel João é Nutricionista e Mestre em Nutrição Clínica, membro efetivo da Ordem dos Nutricionistas (nº 0204N), com o Título de Especialista para a área de Terapia a Reabilitação da Classificação Nacional de Áreas de Educação e Formação, subárea da Nutrição, tendo desenvolvido a sua atividade profissional principalmente na prática clínica, na docência e formação e na investigação. Como Nutricionista, iniciou atividade clínica em 2001, tendo exercido a nível hospitalar, em centro de saúde e em clínica privada. A experiência profissional na área da investigação decorreu, essencialmente, na área oncológica, tendo sido premiada nesse campo (1º Prémio de Nutrição Clínica da Fresenius Kabi, em 2002). Conta com diversas comunicações científicas orais e em painel, tanto em eventos nacionais como internacionais. Atualmente, é Professora Adjunta Convidada na Universidade do Algarve – Escola Superior de Saúde, lecionando à licenciatura em Dietética e Nutrição.