A crónica deste mês é um excerto, lindíssimo, do livro “A Montanha Mágica” de Thomas Mann.
É uma excelente descrição sobre a confrontação da morte de alguém que nos é querido e a maneira como possamos encarar essa experiência. Não pretendo dizer como cada um deve lidar com uma situação destas, mas simplesmente relembrar que a “morte” faz parte do nosso dia-a-dia e que a vida continua.
Não, estranhou, pois, que o avô sobressaísse em autenticidade e perfeição no dia da despedida final. Foi na sala de jantar, naquela mesma sala em que eles tantas vezes se tinham sentado em diante do outro, à hora das refeições.
Hans Lorenz Castorp jazia agora no centro da sala, colocado num caixão com incrustações de prata, rodeado e adornado de coroas de flores. Lutara até ao fim contra a pneumonia, com tenacidade e persistência, apesar de nunca se ter adaptado completamente às condições do seu tempo, e eis que jazia agora ali no seu leito de gala, não se sabia bem se vencedor, se vencido, em todo o caso com uma expressão austera e satisfeita, os traços fortemente alterados pela luta, o nariz afilado, as pernas cobertas por uma colcha onde alguém depositara uma palma, a cabeça elevada por uma almofada de seda, o que permitia que o queixo assentasse de forma perfeita no recorte da golilha solene. Haviam colocado um crucifixo de marfim nas mãos meio ocultas pelos punhos de renda, entre os dedos que, na sua disposição artificialmente natural, não conseguiam disfarçar frieza e inacção. E era para a cruz que o defunto, de pálpebras descidas, parecia olhar fixamente.
No início da pneumonia, Hans Castorp ainda avistara o avô com frequência, o que deixou de acontecer para o fim da doença. Haviam-no poupado em absoluto ao contacto com tão violento combate, que ocorria sobretudo durante a noite, e era de modo indirecto apenas, pela atmosfera de tensão da casa, pelos olhos vermelhos do velho Fiete e pelo vaivém dos médicos, que ele se ia apercebendo do que ali se passava. O resultado com que era confrontado naquela sala podia, contudo, resumir-se ao facto de que o avô finalmente ultrapassara, com toda a solenidade, a adaptação interina, reconhecendo definitivamente à sua forma justa e verdadeira – um resultado louvável, ainda que o velho Fiete não parasse de chorar e de abanar a cabeça, ainda que o própio Hans Castorp não conseguisse evitar as lágrimas, tal como sucedera por ocasião da morte repentina da mãe e da despedida igualmente silenciosa e singular do pai pouco tempo depois.
É que já era a terceira vez que, num curto espaço de tempo e em idade tão tenra, a morte se abatia sobre o espírito e os sentidos – especialmente sobre os sentidos – do pequeno Hans Castorp. Nem a experiência, nem as impressões lhe eram já novidade, antes bastante familiares, e se já das duas primeiras vezes, apesar da mágoa evidente, revelara toda a sua serenidade e segurança, sem perder o controlo sobre si, também agora isso sucedia, com maior intensidade até. No desconhecimento do significado prático destes acontecimentos para a sua vida, ou imerso numa certa indiferença peculiar às crianças, confiante em que o mundo, de uma maneira ou de outra, providenciaria a seu favor, havia manifestado, por ocasião destas mortes, uma certa frieza igualmente infantil e uma atenção bastante objectiva, à qual se associou, no terceiro enterro, um contorno especial de sensatez precoce que a experiência adquirida lhe parecia ter transmitido – e que lhe permitia deixar de ver o choro convulsivo de alguns e o contágio das lágrimas de outros como uma reacção natural. Nos três ou quatro meses que se seguiram à morte do pai, havia-se esquecido da morte. A lembrança voltava agora e todas as impressões sentidas naquela altura se reavivavam de novo, intensas como outrora e em turbilhão, na sua inigualável singularidade.
Procedendo a uma análise e explicitação dessas mesmas impressões, chegar-se-ia sensivelmente às seguintes conclusões: a morte tinha um carácter piedoso, contemplativo, simultaneamente belo e melancólico, um lado espiritual, ao mesmo tempo que apresentava um aspecto totalmente distinto, oposto até, muito físico, muito material, que não podia ser designado de belo, nem de contemplativo ou piedoso, nem tão-pouco de melancólico. O carácter solene e espiritual manifestava-se no funeral pomposo, no esplendor das flores e dos ramos de palmeira que, como é do conhecimento geral, simbolizavam a paz celestial. Manifestava-se ainda, e mais notoriamente, no crucifixo preso nos dedos imanes do avô defunto, na imagem do Salvador, de Thorwaldsen, colocada à cabeceira do ataúde, e nos dois candelabros que se erguiam de ambos os lados e que haviam ganho, naquela circunstância, um pendor igualmente eclesiástico. Tratava-se obviamente de providências tomadas na plena e benevolente consciência de que o avô se reunira para sempre à sua imagem verdadeira e genuína. Todas elas tinham, demais a mais, como o pequeno Hans Castorp bem se apercebia apesar de não o verbalizar, um outro sentido ainda, uma finalidade sóbria, bem patente em especial na imensa quantidade de flores e sobretudo nas tuberosas que se viam por todo o lado: a finalidade de embelezar, dissimular, fazer cair no esquecimento o outro lado da morte, o lado que não era nem belo nem propriamente melancólico, mas que raiava, sim, o indecoroso, o vil e o carnal.
Era este segundo aspecto da morte que transformava o corpo do avô numa matéria estranha, alheia à sua pessoa, semelhante a um boneco de cera em tamanho real, que a morte viera buscar em vez do avô e que se tornava agora objecto de toda aquela pompa e circunstância piedosa. Quem ali jazia , melhor dizendo, o que ali jazia não era, portanto, o avô, mas sim um invólucro, que, como Hans Castorp bem sabia, não era feito de cera mas sim da sua própia matéria, de matéria apenas: eis o que era indecoroso e nem chegava a ser triste – como nem chegam a ser tristes as coisas que têm a ver com o corpo e única e exclusivamente com este. O pequeno Hans Castorp observava aquela figura defunta em tamanho natural, feita de uma matéria lisa da cor da cera e com uma consistência parecida a queijo, detendo-se no rosto e nas mãos do falecido avô. Uma mosca acabara de instalar-se sobre a sua testa imóvel e começava a abanar as asas. O velho Fiete enxotou-a com toda a cautela, evitando tocar na testa, ao mesmo tempo que o seu rosto respeitoso se anuviava, como se não devesse, nem quisesse, ter nada a ver com aquele seu gesto – numa expressão de pudor que se prendia decerto com o facto de o avô ser só já corpo e nada mais do que isso. Após algumas voltas, a mosca veio pousar, por breves instantes, nos dedos do avô, perto da cruz de marfim. Enquanto isto se passava, Hans Castorp julgou sentir, com maior nitidez do que antes, aquela exalação que conhecia de outros tempos, um odor leve mas de uma persistência muito singular, que lhe recordou, para sua vergonha, um companheiro de escola evitado por todos devido a uma enfermidade desagradável. Era para dissimular essa exalação que se encontravam ali as tuberosas que, apesar da sua beleza austera e de toda a exuberância de aromas, não conseguiam cumprir o seu papel.
O menino aproximou-se várias vezes do cadáver: uma primeira vez apenas acompanhado pelo velho Fiete, em seguida com o seu tio-avô Tienappel, negociantes de vinhos, e os tios James e Peter, mais tarde uma terceira vez, quando um grupo de estivadores envergando fatos domingueiros se aproximou por momentos do caixão aberto, a fim de se despedir do antigo dono da firma Castorp & Filho. E depois chegou a hora do funeral. A sala estava cheia de gente e o pastor Bugenhagen da igreja de São Jacob, o mesmo que baptizara Hans Castorp, pronunciou a oração fúnebre do alto da sua golilha espanhola. Mais tarde, sentado no fiacre que seguia imediatamente atrás do carro funerário, o primeiro de uma extensíssima fila, conversou afavelmente com o pequeno Hans Castorp – e assim se fechou mais este capítulo da vida de Hans Castorp, que passado pouco tempo mudou de casa e de ambiente, pela segunda vez já na sua tão curta existência.
[fonte]Referência Bibliográfica: Mann, Thomas – A Montanha Mágica; trad. Gilda Lopes Encarnação. 3ª ed. Alfragide : Publicações Dom Quixote, 2010.[/fonte]